Sumário: Obrigatoriedade de comunicação ao Ministério Público de todas as queixas,
participações ou denúncias que sejam apresentadas nas forças policiais, ainda que prima
facie possam não incorporar factos indiciadores da prática de qualquer ilícito de matriz
criminal.
1. Nos termos do disposto no artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa,
compete ao Ministério Público o exercício da ação penal, o que importa a sua
legitimidade para a prática dos atos enformadores da existência do processo e do
seu objeto, bem como da sua intervenção em todos os atos suscetíveis de
influenciar o sentido final da sua decisão e a efetivação das sanções decretadas
pelos tribunais;
2. A titularidade da ação penal só se entende e ganha conteúdo pragmático se o
estatuto processual do respetivo titular for integrado por um conjunto de
faculdades processuais que possibilitem a existência e a definição, objetiva e
subjetiva, da respetiva ação, a sustentação da acusação perante o órgão
jurisdicional nas fases subsequentes do processo, o controlo das decisões
jurisdicionais e a promoção da efetividade das sanções;
3. Logo, a atribuição da legitimidade para a ação penal à magistratura do Ministério
Público implica a igual consagração de poderes para iniciar o processo, dirigir a
investigação, encerrar o inquérito, identificar e determinar o objeto do processo e
intervir na instrução e no julgamento em termos tais que possa influenciar a
decisão do tribunal;
4. Acresce que a intervenção do Estado-administração no processo penal será
realizada em situação de exata paridade com os cidadãos e sem qualquer acréscimo de estatuto ou de poderes, não podendo qualquer entidade ou órgão
substituir-se ao Ministério Público na titularidade e exercício da ação penal;
5. Nas relações internas do Estado, não pode o Ministério Público ser substituído no
exercício da ação penal, limitando-se a intervenção dos órgãos e entidades
públicas no processo penal às figuras do assistente e/ou parte civil, quando tal
intervenção for legalmente admissível;
6. Nesta senda, o artigo 48.º do Código de Processo Penal, atribui ao Ministério
Público a legitimidade para a ação penal com as limitações decorrentes do próprio
Código (crimes de natureza semi -pública e particular);
7. Densificando a norma constitucional que atribui ao Ministério Público a
titularidade da ação penal, o artigo 53.º ns.1 e 2 do Código de Processo Penal
esclarece que lhe compete receber as denúncias, queixas e participações, apreciar
o seguimento a dar-lhes (em ordem a abrir ou não inquérito), dirigir o inquérito,
deduzir acusação e sustentá-la, efetivamente, na instrução e no julgamento e
promover a execução das penas e das medidas de segurança;
8. Como corolário, impõe-se que a lei ordinária determine que a intervenção dos
órgãos de polícia criminal no âmbito do processo penal tem uma natureza de mera
coadjuvação das autoridades judiciárias designadamente, no que ora releva, do
Ministério Público (cfr. artigo 55.º do Código de Processo Penal);
9. Deste modo, a larga maioria dos poderes de intervenção dos órgãos de polícia
criminal no processo penal têm como fonte a delegação de poderes por parte das
autoridades judiciárias (v.g. cfr. artigo 270.º do Código de Processo Penal), sendo
que os poderes próprios dos órgãos de polícia criminal se reduzem a um
pragmático critério de necessidade enformado por exigências de proximidade e de
celeridade;
10. Relativamente à obtenção da notícia do crime, os órgãos de polícia criminal detêm
competência para recolher tal notícia, por iniciativa própria ou por denúncia de
terceiros e devem sempre comunicá-la ao Ministério Público no prazo mais curto
possível, o qual não pode exceder os dez dias (cfr. artigos 245.º e 248.º n.1 do
Código de Processo Penal);
11. Subsiste, todavia, a questão de saber como devem os órgãos de polícia criminal
agir quando recebem denúncias cujo conteúdo factual não revela, na sua opinião, a
prática de um qualquer crime;
12. Tal questão era controversa até ao momento em que o legislador de 2007 decidiu
resolver a questão por via legislativa, alterando a redação do n.2 do artigo 248.º do
Código de Processo Penal, o qual passou a reger nos seguintes termos “aplica-se o
disposto no número anterior a notícias de crime manifestamente infundadas que
hajam sido transmitidas aos órgãos de polícia criminal”;
13. O substrato da opção legislativa foi o de evitar que o critério dos órgãos de polícia
criminal determinasse a comunicação, ou não, da notícia de crime ao Ministério
Público, o que equivaleria a retirar conteúdo pragmático à oficialidade e à
titularidade da ação penal por parte desta magistratura, assim descurando e
defraudando a opção constitucional;
14. No atual quadro normativo processual-penal, quando um órgão de polícia criminal
recebe uma qualquer denúncia, ainda que na sua opinião manifestamente
infundada, tem a obrigação legal de a comunicar ao Ministério Público, no mais
curto prazo possível, o qual não pode exceder os dez dias;
15. A diferença entre a denúncia e a queixa reside apenas em que aquela
consubstancia uma mera comunicação de factos com uma aparente relevância
jurídico-penal e esta íntegra, ainda, uma manifestação de vontade no sentido do
agente do crime ser punido pela sua conduta;
16. Materialmente semelhante à queixa é a participação, modo de comunicação
tradicionalmente reservado para as autoridades públicas. Em alguns crimes, v.g.
artigo 188.º, n.1 do Código Penal, encontramos a referência à participação como
modo legítimo de comunicar os crimes ao Ministério Público. O que está em
causa com a participação é o conferir às autoridades públicas a possibilidade de
formularem um juízo de oportunidade sobre a perseguição penal do agente de
determinado crime;
17. A terminologia utilizada para designar as peças de expediente nas quais os agentes
policiais exaram as comunicações que recebem dos cidadãos é, em si mesma, irrelevante no que concerne à obrigatoriedade da sua transmissão ao Ministério
Público, porque:
a) não só o cidadão não conhece as designações legais para as peças de
expediente que as entidades públicas elaboram, e
b) tal equivaleria a deixar ao livre arbítrio dos agentes policiais a qualificação
da vontade dos cidadãos e o seu direito constitucional de acesso aos tribunais
e à justiça;
18. Relevante para aquilatar da obrigatoriedade de comunicação ao Ministério
Público é a intenção do cidadão que se dirige à esquadra e não o mero nomen
juris que o agente policial atribui ao documento no qual cristaliza a comunicação
que lhe foi efetuada por aquele;
19. Sempre que qualquer pessoa transmita a um órgão de polícia criminal factos que,
no entender do comunicante constituem crime e/ou devam ser conhecidos pelo
Ministério Público, tem o órgão de polícia criminal a obrigação de transmitir tal
notícia ao Ministério Público no mais curto prazo possível, que não pode
ultrapassar os dez dias, ainda que a considere manifestamente infundada;
20. Só assim, se cumpre o comando constitucional que atribui à magistratura do
Ministério Público a titularidade da ação penal e se salvaguarda o direito de acesso
aos tribunais e à justiça.
Lisboa, 6 de março de 2014
A Inspetora-Geral da Administração Interna,
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